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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Afogados da Ingazeira: impressões de viagem, por Samarone Lima


Saio para caminhar pelas ruas de Afogados da Ingazeira. A beleza dos muros baixos. O frio matinal do Sertão do Pajeú. O silêncio. A praça principal, cheia de gameleiras, flores, e o singelo aviso: “não pise o canteiro”. Os primeiros rostos matinais, os bons dias. Os olhos bons do povo do sertão. Passo por uma casa com três gaiolas na frente. Um passarinho é um galo de campina, conheço de longe. Há um azulão. Pergunto ao senhor simpático, que troca a comida, qual é o terceiro. “É um bigode”, diz com satisfação.


Tenho sorte. Hoje é dia de feira. São 6h15, as barracas estão quase todas montadas. Percorro as ruas, à procura de algo. Um canivete, um peão, sandálias de couro, uma roupa para minha tia. Chego ao Mercado Público. Bebo um café doce, sentado em um banco de madeira. Ao meu lado, duas moças comem um prato completo, com arroz, macarrão e carne. Um menino quer engraxar minha sandália de couro, mas nunca gostei de gente agachada diante de mim, para nada. Bebo o café bem doce e olho tudo.


Sacas de feijão, farinha, fava. Ovo de galinha caipira. Passa um homem com seis galinhas penduradas nos braços, que não reclamam. Amigo, se você tiver galinha caipira e ela estiver dando trabalho, pendure-a um pouco no seu braço, é um santo remédio. Ao meu lado, três homens com o tradicional chapéu de feltro, duros e quietos, fumam um cigarro de palha. Ah, que bom fumar sem essa paranóia urbana do cigarro, que delícia desfrutar de seu vício sem multas. Eu, que não sou fumante, adoro esta calma de quem bafora cigarros de palha em um banco de feira.


Percorro as ruas. Há divisões temáticas. As barracas que vendem roupas, com preços módicos. Procuro uma camisa do Santa Cruz, mas os ventos são desfaforáveis. Há camisas dos clubes do sul. Uma área é destinada a facas, apetrechos da vida, dos animais. Bolsas de couro, sandálias, abridores de lata, panelas. Meninos passam com seus carrinhos de mão, levando feiras alheias e juntando alguns trocados. São meninos com a cara boa, estão se mexendo, têm um olhar muito mais feliz que os meninos que pedem dinheiro.


Saio caminhando, descobrindo a cidade. Ah, que delícia seguir sem rumo, sem mapa, dobrando esquinas, vendo as ruas largas de Afogados. Um homem me conta que o nome da cidade veio por causa de um casal, que foi atravessar o rio Pajeú, e morreu afogado. Os corpos foram encontrados enganxados num pé de ingazeira, me diz, e eu acretido.


O sol vai esquentando. É o final da manhã, paro em um boteco. O som é conhecido. Waldick Soriano. “E despertou meu coração adormecido/Eu tenho medo de não ser correspondido”. Tomo uma água de côco. Pergunto por fumo de rolo, para meu amigo Iramarai. “Só na 15 de Novembro”, responde o proprietário, antes de me contar que tem amigos no Recife. Ao saber que sou do Crato, ele me mostra o ventilador do teto, que comprou de um vendedor que era da minha terra. “Tem 15 anos e nunca quebrou”. Sento em sua cadeira de balanço e vou bebericando o côco. Ah, como sou feliz andando pelo mundo, como adoro encontrar desconhecidos, conversar, prosear, escutar. Nasci para a estrada mesmo, nisso imito o meu avô.


Volto ao Mercado Público. De tanto andar, tenho fome. Paro na venda de uma senhora que usa o óculos na ponta do nariz. Me serve arroz mexido, salada de verdura, arroz, cuscuz, guisado. Peço que ela tire metade, antes de comer. É comida para dois homens do meu porte. Como, tudo está delicioso. Alguns homens já beberam um bocado. Um deles está mamadinho, gesticula, fala alto, coisas que nem ele compreende. Pouco depois, está sentado, no chão. Seus amigos riem. Termino de comer, bebo um delicioso café e pergunto quanto custou o almoço: “Três reais”.


Volto para o hotel. A cidade está em polvorosa. Motos, carros, têm bandeiras dos dois cordões. Totonho, o atual prefeito, tenta a reeleição. Do outro lado, Giza. O embate será duro, uma peleja e tanto. Pelo que escutei do povo, Totonho é o homem da esquerda, que tem uma visão mais completa de seu trabalho. Giza foi citada como a mulher que distribui cestas básicas e coisas do tipo. Não fiz perguntas, apenas escutei. Que ganhe o melhor para os afogadenses. À noite, antes de sair para minha despedida, vejo na TV que 90% dos municípios brasileiros não têm cinema, 80% não têm museus, e somente 21% têm políticas culturais. As bibliotecas, minha paixão, não foram citadas. Os livros, coitados, sempre em último lugar.


Fico sentado na praça de alimentação. A lua cheia vai subindo. Um cão preto, de patinhas brancas, chafurda no lixo, à procura de alguma sobra. Um carro passa com o som altíssimo. “Levantou poeira” puxa a militância de algum candidado a vereador, que não anotei o número. Estão todos de vermelho, com balões. Há homens, velhos, crianças. Aqui não tem guia na TV. Quem vai definir a eleição é o mano a mano, ombro a ombro. Será na raça. Crianças correm, brincando de pega-pega. Faço “chip chip” para o cachorro, ele se empolga demais, tenho que afastá-lo.


Um surdo vem com um adesivo. Tem algo escrito atrás, dizendo que é surdo, precisa de ajuda. Faço ouvidos de mercador, ele vai embora. Olho a alegria do povo, o clima da cidade, fico feliz por ter conhecido Afogados. Vim para uma palestra sobre literatura, parece que voltarei em novembro, para uma oficina de dois dias. Trarei meu amigo Iramarai. E não posso deixar de agradecer a Dona Terezinha Barbosa pelo banho que tomei em sua casa, pouco antes de viajar. Diana Moura, sua sobrinha, disse que eu pedisse “arroz de festa”, mas o máximo que ousei foi pedir água. Na próxima, quem sabe.
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(*) Samarone Lima, cearense de Crato, 39 anos, taurino turrão, como disseram outro dia. Por opção, jornalista desde 1993. Por acidente do destino, dono de bar duas vezes, carreira que encerrou definitivamente, com muitos prejuízos financeiros e psicológicos.


Trabalhou em jornais e revistas os mais diversos, mas também ganhou seu pão escrevendo relatos pornôs para a revista Brazil. Santa Cruz de corpo e alma, desde que chegou ao Recife, em 1987, e se deparou com a massa coral, no Arruda. Zagueiro raçudo na pelada dos “Caducos”, aos domingos, mas com limitações na saída de bola.


Fracassou brutalmente na carreira de boxeador e saxofonista, mas teve um rendimento razoável na carreira política, quando foi presidente da Casa do Estudante Universitário (CEU), em 1991. Todos sobreviveram.
Participou ativamente de dois momentos fundamentais da cidade do Recife: a fundação da Troça Carnavalesca Mista “Os Barba” e da Torcida Organizada Musical “Sanfona Coral”.


Atualmente vive no seu exílio voluntário no Cabo de Santo Agostinho, a 40 quilômetros do Recife, ao lado de Dona Flocely, Rosa, Renato, e dos cães Bam Bam e Gigi.


Está terminando um livro sobre Cuba e tocando na surdina um romance, que tem o fantástico nome de “Adios Nonino”.

Tem duas obsessões no momento: ver o Santa Cruz renascer das cinzas e ganhar algum título, e passar um ano sabático, apenas lendo, escrevendo e vadiando. Não sabe qual das duas coisas é mais difícil.

Ah, devoto de São Francisco.